quarta-feira, 30 de abril de 2014

"blues da morte de amor" de Vasco Graça Moura

já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

 (1942-2014)
 Escritor, poeta, ensaísta, tradutor e político

segunda-feira, 28 de abril de 2014

SONETO DO AMOR E DA MORTE de Vasco Graça Moura


quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

(1942-2014)
 Escritor, poeta, ensaísta, tradutor e político

quinta-feira, 24 de abril de 2014

"25 de Abril" de Adão Cruz

Um cravo vermelho, cristal de vida no céu de chumbo, cada dia um mundo limpo e perfumado,
graças a ti flor da minha idade.

Caminho da esperança às portas da cidade, todo o mel e todos os frutos ali à mão.

Graças a ti cravo vermelho que venceste a solidão, veio o tempo ao nosso encontro e a manhã
despertou agitando as árvores.

E a noite se fez de estrelas que desceram aos cantos do jardim.

Um cravo vermelho e quente, mais que tudo amando a vida em qualquer língua entendida.

O mundo tinha o sabor de uma maçã, e os olhos inacabados eram cravos vermelhos.

Não havia cárceres nem torturas, apenas o calor de uma fogueira na praça do entusiasmo, e
uma jovem mulher dormindo um sono de criança nos telhados da revolução.

O seu rosto era uma nuvem dourada pelo sol e pela lua, os cabelos trigueiros uma seara e nos lábios a canção de Abril que encheu a rua.

Adão Cruz (1937- )
(médico cardiologista, poeta, pintor)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

QUERIA QUE OS PORTUGUESES de Agostinho da Silva

Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor

sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal

todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler

teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura

e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale

até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião

que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira

alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto

se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia

deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro. 



Agostinho da Silva, in 'Poemas'
1906-1994 
(Filósofo, poeta e ensaísta português)